AGUIARI, Cesar Jorge. “Subsídios na Geração Distribuída: a parte da história que
não te contaram!”. Agência Canal Energia. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2019.
Sobre a arte de colocar as primeiras coisas em primeiro, ou, como diria Stephen
Covey: “A coisa mais importante é manter a coisa mais importante a coisa mais
importante”.
Os profissionais do mercado de energias renováveis, em especial aqueles ligados ao
mercado de Geração Distribuída (GD), acompanham há algum tempo com
preocupação a discussão sobre os subsídios do setor elétrico. Estão preocupados
com razão, pois, nas análises e posições publicadas até agora, o setor da GD é
apresentado quase que por unanimidade como a bruxa da vez, e a temporada de
caça a esta bruxa está aberta. Mas, nós sabemos que unanimidades são perigosas.
Antes de mais nada, é importante entender vários conceitos misturados no pacote
“subsídios do setor elétrico”. Não foi por acaso que coloquei entre aspas. Como
veremos mais na frente, em alguns casos temos eletricidade que foi gerada por um
terceiro e foi comprada, transportada e distribuída pelas respectivas concessionárias,
sendo entregue a algumas classes de consumidores escolhidas a dedo por um valor
menor que o de mercado. Esta diferença entre o valor pago e o valor de mercado é
efetivamente alocada e paga por outros usuários do sistema através da chamada
Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). É, portanto, classificada com razão
como subsídio, similar à meia-entrada no cinema.
No caso da GD a situação é diferente: não é um terceiro que gera a energia, mas sim o próprio dono da usina, e a rede de distribuição é usada para garantir o
balanceamento entre consumo e demanda. Vale frisar que os usuários da GD pagam pelo uso através do custo de disponibilidade ou da demanda contratada.
É crucial entender bem esse mecanismo, pois além de pagar pelo uso, os usuários
da GD prestam um serviço de alto valor de brinde para a operadora da rede. Explico:
na GD fotovoltaica o pico de geração ocorre nos momentos de maior irradiação
solar, que naturalmente coincidem com os momentos de pico de demanda elétrica
para sistemas de ar condicionado. Nestes momentos, as usinas que operam dentro
do modelo de GD disponibilizam o seu excedente de energia próximo aos pontos de
demanda, estabilizando a rede durante o pico de demanda de climatização. Isso
reduz a necessidade de fornecimento de energia de termoelétricas (principais
responsáveis pelo gatilho das bandeiras tarifárias) ou hidrelétricas, geralmente,
localizadas a centenas de quilômetros de distância.
Falando em centenas de quilômetros, aqui mais uma componente do serviço prestado: as perdas médias do Sistema Interligado Nacional, em especial na transformação e na transmissão de longa distância, giram em torno de 20%. Para ajudar a visualizar: 20%de perdas no sistema significa algo em torno de 120 TWh/ano, ou seja, mais que a produção anual de Itaipu (em torno de100 TWh).É claro que quão menor for a distância entre gerador e consumidor, menores as perdas e maior será a eficiência global do sistema. Este é um dos principais benefícios do modelo da geração distribuída: o fato dos sistemas de GD estarem fisicamente próximos dos pontos de demanda, contribuindo para redução das perdas do sistema.
Apesar destes benefícios, a forma que a situação vem sendo apresentada ao público
tem aparentemente um objetivo claro: trata-se de uma tentativa clara e direta de
manipular a opinião do consumidor final, responsabilizando a GD pelos altos custos
de eletricidade e colocando o consumidor contra o setor.
Vamos ao resumo dos dados sobre a CDE: de um lado temos principalmente consumidores residenciais, comerciais e industriais financiando a CDE como os “patrocinadores” involuntários do sistema. Do outro temos serviços públicos, em especial iluminação pública, transporte, abastecimento de água e esgotamento sanitário, assim como a tarifa rural como os principais beneficiários. O olhar atento para a evolução dos dados de consumo destes grupos mostra que ganhos de eficiência simplesmente não existiram nos últimos anos. Ora, o mundo coloca eficiência energética como uma das principais prioridades do setor elétrico e para
redução de emissões de gases de efeito estufa. E o Brasil? Vejamos:
Iluminação Pública:
Hoje em dia não se pode mais afirmar que a tecnologia LED de iluminação seja uma novidade tecnológica. Sociedades que tratam os recursos dos pagadores de
impostos com seriedade não se permitem deixar ganhos de eficiência energética da ordem de 30 a 50% simplesmente assim na mesa. Mas isso está sendo feito por aqui há anos. Ilustrando com a mesma figura, temos de 5 a 8% da geração anual de Itaipu sendo desperdiçados na iluminação das nossas cidades, que em muitos casos ainda cobram a Contribuição Iluminação Pública (CIP) extra na conta de luz. Sério?
Serviços de água e esgoto:
Os serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário consomem
volumes expressivos de eletricidade, seja no bombeamento de água e de esgoto, ou
nas estações de tratamento, nas bombas e nos equipamentos de movimentação, de
aeração dos tanques, entre outros. Mundo afora é comum observar estações de
tratamento de esgoto que implementaram o processo de biodigestão anaeróbia
integrado ao processo de tratamento. Esta tecnologia, utilizada há décadas lá fora,
traz enormes ganhos de eficiência. Dois em especial: além de consumir parte do
lodo final, reduzindo assim o custo e a quantidade de combustível consumido no
descarte do mesmo, o produto da biodigestão, o biogás, pode ser transformado em
energia elétrica no local, atendendo assim à própria demanda da estação. Com
frequência, tais estações de tratamento de esgoto conseguem produzir a quantidade
necessária para se tornarem autossuficientes em eletricidade. A autossuficiência se
torna ainda mais importante, quando consideramos os investimentos necessários
para levar os serviços de saneamento básico à parcela da população brasileira hoje
não atendida, e a quantidade de eletricidade que seria necessária para atender tal
expansão. Apenas na estrutura atual, ou seja, sem contar a expansão necessária do
sistema, o potencial da autossuficiência em termos de economia de energia também
gira em torno de 5 a 8% da geração anual de Itaipu.
Tarifa Rural:
No grupo de beneficiários dos subsídios da tarifa rural estão, entre outros, pecuaristas e agricultores de médio e grande porte, exportadores, claros representantes do agrobusiness de sucesso brasileiro. Em outras palavras, esses empreendedores rurais estão sendo subsidiados pela tarifa residencial da vovó e da dona de casa da classe média. Esta distorção é perversa por dois lados: obviamente o fato de consumidores residenciais subsidiarem o empreendedor bem-sucedido do agrobusiness é cruel. Mas, além disso, a tarifa rural artificialmente baixa diminui a atratividade de investimentos em autogeração nestes empreendimentos rurais.
Estamos falando de oportunidades obvias, como por exemplo biodigestão integrada
à pecuária ou sistemas de irrigação integrados a geração solar, que assim deixam de
ser implementados. Um total de aproximadamente 30 TWh são disponibilizados com
este subsídio por ano, ou seja, em torno de 30% da energia de Itaipu.
Se o objetivo real é reduzir subsídios, principalmente aqueles que não tenham razão
plausível para existir ou não estejam trazendo efeitos positivos, acho que temos aqui
um mapa do tesouro. Delineamos nos 3 grupos acima um potencial equivalente a
quase meia Itaipu, sem contar o efeito positivo da geração distribuída para redução
das perdas de transmissão mencionado no início. A geração anual projetada do setor
da GD corresponde a menos que 2% da Usina de Itaipu. Pois é, manter as primeiras
coisas em primeiro é definitivamente uma arte.
Não vejo justificativa plausível para que o agrobusiness tenha que ser subsidiado
pelos outros usuários do sistema. É também evidente que se o subsídio no custo da
eletricidade para serviços públicos estivesse atrelado a objetivos claros de ganho de
eficiência ou de autossuficiência a situação seria diferente e o montante total
subsídios seria decrescente.
Mas temos que entender os interesses em jogo. De um lado temos as
concessionárias de energia perdendo uma parcela do seu mercado cativo para a
GD, as unidades da federação perdendo a arrecadação de ICMS das contas de luz,
os municípios e as companhias de saneamento sendo obrigados a investir em
eficiência, e finalmente o agrobusiness efetivamente perdendo uma “teta”. Do outro,
temos o setor da GD, que, a partir de meados de 2017, passa a ter condições
competitivas e começa a penetrar no mercado brasileiro. Se o esforço para redução
dos subsídios fosse realmente fiel a Pareto, sabemos quais prioridades estariam
sendo abordadas. Mas infelizmente optou-se pela caça à bruxa da GD.
É difícil estimar as consequências negativas desse jogo de desinformação para a
imagem do setor de GD. A insegurança jurídica causada por uma eventual mudança
das regras no meio do jogo, como a que está sendo planejada com a mudança da
REN482/2012 ANEEL, vai sem dúvida impactar negativamente o desenvolvimento
do setor, com risco de atrasar ainda mais a entrada efetiva do Brasil no mercado
mundial de USD 200 bilhões anuais das energias renováveis. Esta cartada pode
atender os interesses de curto prazo de setores que insistem em se manter
ineficientes e atrasados, mas não resta dúvida que não atende os interesses de
longo prazo dos consumidores e da sociedade brasileira.
Por: Cesar Jorge Aguiari é co-fundador e sócio da Saren (Engenheiro de Produção
pela Poli-USP, MSc e PhD pela Technische Universität de Viena)
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